CONTO: Cadê Tereza?

 Desde os trezes anos Tereza sabia o que era lavar roupas que não as suas. Após o infarto da dona Lúcia, sua mãe, não lhe sobrara nada além de um barraco a desmoronar, ali na ladeira torta da Cidade de Deus de Feira, algumas dívidas e um futuro incerto para alguém que não tinha nada nem muito sabia.

Nessa cidadezinha turbulenta que é Feira de Santana, teve de descobrir por meios amargos que a infância é pouco doce e que a merenda da escola não satisfaz o restante do dia. Lavava de início as roupas das vizinhas que mais iam com a sua cara, um pouco menos pobres, sempre exagerando no cuidado para entrega-las perfeitamente limpas, caso contrário recebia tapas e não dinheiro. Quando chegava em casa, tarde da noite, seus braços nunca pareciam capazes de sustentar o peso do lápis e sempre que pegava um livro, adormecia sem passar da admiração da capa.

Cresceu assim: lavando demais, cansada demais, sem muito tempo. Lembrava ainda que gostava de cantar pagode no chuveiro, mas já não sabia mais fazer isso, deve ter perdido o jeito. Aos dezesseis, cresceu então sua luta, sua pena, seus choros, seus braços cansados. Lavava agora pra gerentes de banco, pra empresários, pra magnatas. Tentava sem ânimo terminar o ensino fundamental, os meninos já a achavam curva, burra, mas ainda peituda, bunduda, bonita.

- Ô, Terezinha, mas que roupas limpas! Você sempre impecável! – Diziam. 

E assim passou da lavanderia pra cozinha, pras diversas salas, todos os banheiros. Aprendeu gosto por cozinhar pra rico. Sua mania de sempre botar dendê em tudo, sua mão boa, o sal do seu suor sempre no ponto. Ficou famosa em todas as casas por quais passou, pelo seu Ipeté gostoso. Tinha mãos de baiana, diziam, mesmo novinha demais.

Logo conheceu Geraldo, amigo de escola, tão atrasado quanto ela, trabalhava pertinho de dona Graça, sua patroa, parecia direito apesar da cachaça excessiva. Papo manso, filho de Exu, já tinha 20 e uma facada nas costas. De sorriso farto, lábia suculenta, ganhou Tereza que já muito entendia de amores e tesões e nãos que viram sim.

Do gozo preso nasceu Joaquim, e o muro do quintal ainda nem tinha sido erguido. Faltava dinheiro, leite, emprego, começou a faltar amor e tesão também. Demitido continuamente dos trabalhos, Geraldo saiu com a notícia doce de que tinha encontrado um emprego em Salvador e que voltaria trazendo fraldas. Mas não voltou. E desta vez Tereza não se viu só: Joaquim lhe alertava o tempo todo que ele estava ali presente, reclamando fome. Faminta também, o levava no braço para cima e para baixo, limpando, cozinhando, descendo a ladeira do Centro de Abastecimento para comprar inhames pra fazer seu famoso Ipeté pros terreiros da cidade.

Depressa demais Joaquim foi crescendo, falando, gingando da mesma forma ordinária que o pai, mas danava também na leitura, na conversa mansa, no gosto pela liberdade e pela arte. Conheceu Feira de cabo a rabo antes dos dez anos, sabe-se lá como. E Tereza vivia na mesma, um tanto mais enrugada, mais sóbria, mas também cheia de amor por aquele pequeno que ela sabia que tinha algo além, embora não tivesse tempo pra saber bem o que, pra estar presente. Só sentia um calafrio toda vez que ele abria a boca; que uma vizinha chegava xingando-o por pular seu quintal pra roubar frutas; que a escola lhe cobrava a presença na tal da “reunião de pais”. Não sabia ser presente, nem podia. De segunda à sexta nas casas alheias e nos finais de semana descascando inhame e preparando Ipeté. Joaquim se virou só.

No bairro em que viviam, constantemente via ao sair de casa pro trabalho – e sempre saía muito cedo – corpos de garotos tão parecidos com o de Joaquim estirados na calçada. Começou a lhe inquietar o futuro de seu menino. A escola não o guardava tempo o suficiente, tinha de tirá-lo da rua. Não tinha dinheiro para clubes de esportes, para teatro, não tinha dinheiro pra nada. Até que voltando pra casa no ônibus do Aviário, entre um cochilo e outro, soube de uma aula gratuita de instrumentos musicais. Que sonho seu menino ser músico!

Chegou em casa apressada, foi logo lhe inscrever.

Joaquim via todo o esforço daquela mãe que ele sabia que nunca encontraria outra igual. Nunca soube de pai, de família, deles só retinha os sobrenomes. Queria poder passar mais tempo com sua mainha, queria fazer-lhe uma música. Então quando soube que iria ter aulas de instrumentos, se animou todo, foi com tudo. Aprendeu violão em semanas, dominava a flauta e chegava sempre assoviando pra Tereza. Ela, claro, se desmanchava em lágrimas.

- É de Jorge Ben Jor, mainha. Sabia que o nome é Cadê Tereza? - Perguntava com os olhos úmidos.

- Tu vai ter que tocar ela pra mim algum dia. Assovia mais um pouquinho, vai.

Ficou mestre mesmo foi no pandeiro e no berimbau. O menino encantava os professores, as vizinhas, tinha o dom de acalentar e distribuir gargalhadas. Por influência convenceu os professores a promoverem um festival no centro cultural do bairro onde tinha aulas. Dentro do peito, além da farra, guardava a vontade de finalmente sua mãe ter um motivo pra ir lhe ver tocar. Pensava nela finalmente sentada lhe escutando, não correndo contra o tempo, contra a fome dos dois.

De cenário à orquestra, Joaquim foi à frente de tudo. Os professores, animados pelo poder da presença do menino, não imaginariam a algazarra que ele preparava. Com os outros alunos das aulas, organizou um número musical, queria cantar e tocar a música de Jorge Ben Jor pra sua Tereza e tinha de ser lindo. Alastrou o fuxico do evento nos becos e nas bocas do bairro. De convite na mão, esperou Tereza chegar exausta do trabalho. Parecia mais velha, mais cansada ainda, mas quando soube que seu filho iria tocar e cantar uma música, não sabe como mas conseguiu sorrir de verdade.

Mas como avisar pra dona Ana, patroa tão boa e de longa data, que iria faltar pra assistir a apresentação de seu menino?

Saiu cedo, chegou lá contando toda orgulhosa:

– De mãe pra mãe, dona Ana, amanhã eu venho e limpo. É só hoje. Eu juro – Pediu enérgica.

– Que besteira, Tereza, tu já está aqui. Preciso dessa casa limpa hoje, meus filhos estão chegando de São Paulo. Vai já fazer teus afazeres, mulher. Tu sabe como emprego tá difícil hoje em dia, né? –

Com o violão na mão, Joaquim esperou assim como todas as mães dos alunos, professores, amigos, vizinhos, por Tereza. Mas já tardava, e tinham de adiantar as coisas. Cadê Tereza?

– Vai ter que começar, Joaquim. Não tem jeito. – Admitiu o professor, já impaciente, com a camisa suada colada ao corpo, com mais duas escolas pra lecionar no dia pela frente.

Com o coração moído, miúdo, Joaquim iniciou de lágrimas nos olhos a canção, pesando a mão no instrumento, teso, o olho duro na porta à espreita e espera. Não conseguia ver mais ninguém. Tudo ali que cantava lhe doía, lhe rasgava. Entendia que pra ter o que comer mais tarde, ela teria que ficar em seu trabalho. Cantava mesmo sem vontade, quase falho.

Quando, do outro lado da sala um balançar de mãos lhe chamou a atenção, se deparou então com Tereza com sua sacola de inhames na mão, a roupa gasta, os olhos em inundações, encostada na janela, querendo avisar um “estou aqui”. Desafinou, engoliu seco. Os moleques vaiaram um “ahhhh” uníssono que em lamento corria pelo espaço e pelas bocas das senhoras. Piscando os olhos pra ver se era ela ali mesmo, quando confirmou mal pode sorrir e recomeçou a cantar a música com tamanho talento e vontade, que atraiu a atenção até dos ratos da esquina e até eles compareceram entre as pernas numerosas.

Doutro lado do salão, Tereza não sabia bem se chorava pela presença linda do seu menino, cantando e tocando tão bem, esperançosa pelo seu futuro, ou se pela certeza de amanhã ter de sair ainda mais cedo pra procurar um novo emprego.

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